sexta-feira, 15 de novembro de 2013

A parteira

O POETA MÁRCIO AHIMSA ADENTRA A ALMA DO LIVRO "A PARTEIRA" E LHE ENOBRECE COM UM EXCELENTE TEXTO. LEIAM:

Resenha sobre a obra: A parteira, do poeta Adenildo Lima
(Márcio Ahimsa)

“No sítio da lagartixa e do limão, ali onde mal sabiam o que era pão, a quem a pátria vomitou e, quando não mata no ventre, na vida” – Lima, Adenildo, A parteira, Editora da Gente, São Paulo, 2013.

É nesse cenário de fábulas onde a terra rachada vomita fogo em labaredas e revela suas veredas que nos deparamos com a essência humana na pele caricata de uma gente que constrói a vida pelo revés do mundo.
A parteira é uma obra concisa, estridente e real que nos mostra a tona de um povo emergindo de sua própria força, sua fé, sua esperança. Aqui, onde muitos já nascem no fim, a vida é um soslaio observando a gruta ao longe, como semente que vigora na tez de uma rocha.
A obra em si possui voz própria, a voz dos esquecidos, que é a voz de quem tem fome e não fala. Comparar a obra de Adenildo Lima com qualquer outra obra é um atrevimento, senão uma ofensa obliqua, pois se temos um caráter construtivo semântico intencional na obra de João Cabral de Melo Neto, ou com um cunho sócio psicológico proposto por Graciliano Ramos em “São Bernardo”, na pele do personagem Paulo Honório, que embrutece a alma, não temos em “A parteira” nada disso. Temos sim o menino Pedro com sua carência de brinquedo, temos a enxada latente cortando seu pé esquerdo na sinonímia de um tempo que ainda acontece na nossa contemporaneidade.
A parteira é um grito e um silêncio, é essa paradoxal verossimilhança da realidade de um país onde, de um lado é latente a dor escorrendo pelo esconderijo em tom vermelho do nosso agreste e, do outro, é como se fosse uma nódoa no tom de um conto de fadas onde se acredita em fantasias criadas, mas não se crê em verdades cruas. Para quem vive no centro ótico do mundo, o agreste, o ocre das capoeiras onde correm as crianças descalças e nuas atrás de um ópio que as tornem reais, qualquer cabra ou maracatu para espetar a dor da realidade, é apenas uma fábula ou história fantástica. Mas no leito dos extremos de uma nação, esteja ela em qualquer continente, os contos de fadas não maquiam a realidade. São verídicas as experiências de uma gente que caminha no revés da história.
Assim, a parteira é o silêncio que se faz ouvir na voz de uma gente onde um punhado de sal é a medicina, sem a charlatanice pregada nas igrejas, sem a filantropia que gera lucros.
Ali, onde Madalena é a mãe do menino abstrato, cheio de ginga e trato, é onde a realidade nos presenteia como ser existente, como ente que se faz presente na orla do ontem, como papel timbrado no prefácio do hoje do que um dia fomos, do que somos, do que ainda vamos descobrir ser.
Em “A parteira”, a mulher abre a serra e se cobre de terra. Se sente a síntese da vida. A parteira é Maria e ao mesmo tempo o enlevo da existência na sua tênue andança. É a agrura de um povo na busca de um arrebatamento: existir.
A obra “A parteira” é a primazia de um tempo de um existir humano onde grito e silêncio são sinônimos dentro de uma equação nunca exata. Pois existir não é simplesmente ser pedra. Existir sugere a mutação do tempo. Sugere ser a lâmina que decepa a própria vida e ao mesmo tempo a chama que acena para o viver.
Nessa obra o homem é assassino de si ao se permitir nascer. É filosoficamente uma catarse sobre a tragédia humana de existir. Quem constrói a realidade? O homem ou a própria realidade das coisas não passa de lembranças de um ser que morre e que, no fim, não é nada?
Nessa obra eu sinto o poeta nascendo pelos vales de sua própria palavra gritando os silêncios que nunca vem à tona, ou que estão sempre consigo amordaçados pelas sandálias que o calçam da nossa triste calçada de sonhos.
Aqui, nesse cenário de orquestra, a vitrola era um vivo morto com os versos dessa poesia retrato onde João naufragou sem sintomas, de apenas desnutrição.



Fonte: Márcio Ahimsa

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